terça-feira, 16 de junho de 2009

Sol, Enxada e Blues

"Quem nunca dormiu à noite e acordou de repente, suando frio e chorando, chorando, chorando. Se isso lhe aconteceu, então você foi apanhado pelo blues". “A frase de Robert Johnson, um dos verdadeiros heróis trágicos do gênero, é o pronunciamento perfeito dessa condição ímpar no seu âmago de angústias humanas decodificadas em forma de música e poesia. O blues, ora demônio azul (blue devil, uma antiga expressão britânica, que conotava um estado de tristeza profunda), ora estágio psíquico de cólera amarga, ora melodia quadrilátera e misteriosa, ainda desenha suas facadas nos corações daqueles que o conhecem. E paea saber do blues, a melhor maneira é o ouvindo, o vivendo, o sentindo, o gritando, o chorando e morrendo aos poucos.

De onde emergiu esse assombro de música? Qual a gênesis do blues? Mais segredos não descobertos ainda acobertam as respostas e essas indagações. Sabe-se que o blues nasceu dos primeiros gritos dos escravos negros levados pelos ingleses para os Estados Unidos, até meados do século XIX. Foram homens e mulheres provenientes de tribos Ashanti do continente africano. Ao aportarem em solo norte-americano para trabalharem nas lavouras de algodão, milho e tabaco, o céu ardente pelo sol era o único companheiro. Foi uma escrevidão melancólica, tediosa, corrosiva, um pouco diferente da nossa, que era agitada, açoitada, torturada de modo atroz. O escravo americano agonizava na solidão da enxada e do calor ou da neve e não no ferro quente de um feitor português. A relação era de abandono e desprezo humilhantes, sem miscigenação.

Até que esses negros começaram a gritar. E o grito era o canto do lamento, canções medonhas, desafinadas à primeira audição, uma música esdrúxula. Com apenas cinco notas da chamada escala pentatônica oriunda da musicalidade Ashanti, os escravos cometiam as work-songs, a célula-máter do blues. Violões, banjos, washboards, gaitas-de-boca, jew's harps, bow diddley's, jungs, kazoos. Uns instrumentos eram adaptados, outros inventados, outros roubados. Fim ilusório da escravidão, final do século XIX e o blues ainda parecia uma massa sonora semi-amorfa. Até que os escravos de ontem se tornaram os artistas e trovadores daquele presente. E outras influências acabaram definindo o crpo harmâmonico do blues, como o country, o cajun, o gospel e os spirituals, essas duas últmias de cunho religioso, o que promoveu ao blues uma contradição fascinante, já que os pactos com o diabo se tornaram procedimentos triviais dos que buscavam a felicidade nunca alcançada.
O blues sempre abordou as frustrações fatais dos negros escravizados dos Estados Unidos, mas não de uma forma panfletária, comunitária e até certo ponto politizada, como os sambas brasileiros. Era a canção que partia do interior, do coração de cada sofredor de pele escura e exalada em temáticas que falavam da própria solidão, da saudade da terra-mãe, a dor da labuta gratuita eterna e, como não podia deixar a revolta com Deus, que permitia esse padecimento. Temas como mulheres, amores não correspondidos, a dor de cotovelo em si, foram prerrogativas de fases posteriores do gênero, onde a bebida alcoólica, principalmente o “whisky de milho” ou bourbon, começou a se tornar um elemento onipresente no repertório do blues e, digamos, no reforço “energético” dos bluesman.
Esse fator de individualidade da escravidão norte-americana acaba abalando um conceito antigo e frequentemente recorrido quando se compara as situação lá e cá pelo Brasil. Nos Estados Unidos, costuma-se dizer, que o racismo é sincero, escancarado, exposto, e aqui, velado, oculto, hipócrita. Por incrível que pareça, a história primitiva do blues, uma discussão geralmente restrita ao plano estético-artístico, ajuda a motivar a revisão dessa tese. Em ambos os países, os negros os negros são a maioria da população e o preconceito não é apenas o da cor da pele, mas de outros segmentos de participação social. Nos Estados Unidos e no Brasil, a discriminação racial contra os negros são conseqüências de processos diferentes, porém iguais na sua carga de resultados explícitos nas pirâmides das estatísticas sobre pobreza e condições de vida. Os sambas originais batizados nas senzalas nacionais foram o grito coletivo de liberdade e melhores condições de vida. As inúmeras tentativas de fuga, algumas com êxito, e a coragem do escravo brasileiro em, muitas vezes afrontar os seus algozes, fizeram da música negra um misto de dor, orgulho, revolta e regozijo. Já o blues como música foi inicialmente o manifesto do escravo negro corroído por dentro, dotado de um coração amargurado e queria apenas a liberdade para poder levar sua vida em frente. O silêncio branco era o seu pior inimigo, um anjo maligno que precisava ser derrotado pela forma mais rudimentar e desesperada de som: o grito ou o shout, que culminou no blues, o estilo musical mais influente do século XX, fornecedor de sêmem para a geração do soul, do jazz e do eterno rock’n’roll.

Vida longa ao blues, que, apesar das crueldades que a vida impôs aos negros escravizados no sul dos Estados Unidos, é a música mais sublime e mais contundente de todas. Mesmo após várias metamorfoses, a essência permanece: se você acordar no meio da noite com insônia, suando frio e chorando, chorando, chorando sem saber o motivo, não se preocupe. Você foi agarrado pelo espírito poderoso do blues.
Ligue o seu som e ponha um CD do Lightnin’ Hopkins, B.B. King ou Robert Johnson. Mergulhe na sua própria alma, no seu próprio ser e descubra o que é o blues.”


Clayton Sales

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